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MATERIAL FORNECIDO PELO COLEGA XIKO LIMA COM REFERÊNCIA À AULA 03, DA PROFª JULIANA RIBEIRO 

Francisco Lima
xikolim@yahoo.com.br





Autor: José Jorge de Carvalho

Título:  Um Panorama da Música Afro-brasileira: Parte 1. Dos Gêneros Tradicionais aos Primórdios do Samba.

Indicação bibliográfica: Série Antropologia, Departamento de antropologia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, 2000.

Localização: www.unb.br/ics/dan/Serie275empdf.pdf

Data da 1ª edição: 2000                                              

Informação sobre a edição: Texto que resume parte das aulas ministradas pelo autor na Universidade de Wisconsin-Madison, no primeiro semestre de 1999, como professor visitante da Cátedra de Etnomusicologia.


                 
              Vissungo:

“a) Vissungos
Os vissungos são cantos de força. Foram originalmente cantados durante o trabalho de mineração nos rios de Minas Gerais no início do século dezoito. Adotando a perspectiva comparativa já padronizada da Etnomusicologia, poderiam ser classificados como cantos de trabalho. Contudo, se tivermos em mente que as pessoas que os cantavam estavam no exercício de suas atividades sob severa coerção física, ao chamá-los de ‘cantos de trabalho’ dificilmente estaríamos refletindo o ponto de vista do sujeito que cantava. O ambiente para a execução dos vissungos está bem retratado na Figura XLII dos Riscos Iluminados de Carlos Julião, produzido no último quarto do século dezoito e publicado por volta de 18009. Após o declínio da mineração naquela região, o vissungo tornou-se uma tradição de canto ritual, na qual o trabalho real na mineração de ouro era dramatizado numa ocasião de esforço comunitário. Sob essa forma ritual foram registrados na região do Serro (exatamente no mesmo local citado na Figura XLII quase duzentos anos antes) por Ayres da Matta Machado Filho (1978). A qualidade de gravação era péssima nos anos trinta, porém do que pude ouvir das grandes originais, a base rítmica era muito provavelmente composta por um trio de tambores, tocando três padrões distintos polirritmicamente entrelaçados, quem sabe ligadas a um padrão de candombe, tão remoto da linha básica da música afro-brasileira secular e comercial quanto os vissungos. Nos anos sessenta Clementina de Jesus gravou-os com um grupo de músicos. A base rítmica escolhida não repetiu o padrão rítmico original, mas usou um tipo de ritmos binários generalizados de umbanda, tais como o barravento, que ouvimos em casas de umbanda, macumba e jurema por todo o país.

1. Vissungo (canto de escravo da área de mineração de Minas Gerais)  

Cantado por Clementina de Jesus
Êi ê covicará iô bambi
tuara uassage ô atundo mera
covicara tuca tunda
Dona Maria de Ouro Fino
criola bonita num vai na venda
chora chora chora só
chora chora chora só

A lingüista Yeda Pessoa de Castro, especialista em idiomas bantos, ofereceu-me a
seguinte provável tradução da primeira parte do texto: ‘Está chovendo, de manhã cedo, e as
galinhas estão ciscando o chão.’
Nesse canto pode-se realizar o exercício típico da audição errada; muitas vezes o ouvinte
acrescenta seu próprio desejo e muda o que escuta em uma letra de canção. Aqui, por exemplo, Clementina de Jesus deixa a energia da voz cair quase ao silêncio nas palavras ‘na venda’. Por muito tempo entendi que ela dizia ‘não vai nascer’: uma linda mulata não vai nascer.
Para começar, o texto revela uma cena muito prosaica e doméstica, ligada aos arredores de uma vila da Minas Gerais colonial: de manhã cedo (geralmente as galinhas acordam com a aurora), está chovendo e por isso a mulatinha não pode ir à venda. Contudo, como todos os vissungos transmitem um significado esotérico, podemos arriscar alguma interpretação com base nas informações acessórias disponíveis. Os dois conjuntos de significantes, a saber, sua incapacidade de sair de casa e as pesadas gotas de chuva, ambas formam uma cadeia de significado coerente com a imagem das lágrimas derramando de seus olhos. E o nome ‘Dona Maria de Ouro Fino’, que poderia ser de uma sinhá, parece contrapor-se à imagem da mulata sem nome, quem sabe indicando a incapacidade da geração de uma beleza negra feminina em circunstâncias tão desumanas.
Nesse vissungo, Clementina inspira o ar num momento que pode ser considerado ‘errado’, do ponto de vista da música popular comercial. Numa gravação comercial, o produtor provavelmente teria pedido a ela para repetir a passagem. Contudo, sua respiração ‘errada’ pode ser ouvida como simbolicamente correta, pois torna-se icônica do texto, que diz: ele chora, ele chora, sozinho. O defeito na voz, a respiração errada, pode ser ouvido iconicamente como o choro do escravo que não teve a oportunidade de fugir para o quilombo junto com o rapaz.

2. Vissungo (canto de escravo da região de mineração de Minas Gerais) - cantado por Clementina de Jesus

Muriquinho piquinino,
ô parente
muriquinho piquinino
de quissamba na cacunda.
Purugunta onde vai,
ô parente.
Purugunta onde vai,
pro quilombo do Dumbá.
Ei chora-chora mgongo ê devera
chora, gongo, chora.
Ei chora-chora mgongo ê cambada
chora, gongo chora.

Tradução oferecida por descendentes dos escravos que trabalhavam nas minas nas regiões do Serro e Diamantina: ‘O menino, com a trouxa de roupas nas costas, está correndo para o quilombo do Dumbá. Os que ficam choram porque não podem acompanhá-lo.’ (Filho, 1978).
Os vissungos, como as letras de músicas de umbanda para algumas divindades tais como os Pretos Velhos e Pretas Velhas, dramatizam um emprego particular da língua portuguesa que soa infantil, especialmente com diminutivos. Foi estabelecida historicamente uma correlação entre o modo pelo qual os falantes bantos alteram a morfologia portuguesa pela adição de vogais, expandindo assim o número original de fonemas das palavras e transmitindo a impressão de uma maneira infantil de falar o português brasileiro. Em resumo, o processo de bantuização do português brasileiro foi ideologicamente construído como se o sujeito tivesse se tornado mentalmente infantil, retardado ou incapacitado. Mais ainda, como se essa fala bantuizada indicasse um quê de falta de auto-estima, de covardia, de inferioridade aceita e aberta – enfim, é a imagem da fala do escravo que expressa o gozo que sente situando-se acriticamente dentro dessa estrutura clássica, assimilada ao sado-masoquismo interpessoal, perenizado conceitualmente na famosa dialética amo-escravo formulada por Hegel e revisitada por teóricos do século vinte, tais como Frantz Fanon e Jacques Lacan. ‘Muriquinho’ é uma bantuização de ‘mulequinho’, menininho. Muriquinho piquinino significa um ‘menininho bem pequeno’.
Qual é o ‘eu’ que fala na canção? Para quem ele fala – isto é, quem é o tu para ele – e
quem é o terceiro que garante a comunicação que ele tenta estabelecer? O sujeito diz aqui que alguém pergunta para onde vai o menino. Alguém chora um bocado, provavelmente a ‘cambada’ (isto é, o grupo de companheiros que se auto-denomina com o termo inferiorizante a eles atribuído pelo homem branco; um coletivo anônimo e despersonalizado) está chorando. E o gongo, o sino de ferro que anuncia o começo e o fim do dia de trabalho dos escravos nas minas, também está chorando. Temos aqui aquilo que Mikhail Bakhtin chama de dupla voz: o sujeito está chorando pela afirmação de que outros choram 10.

3. Vissungo – Clementina de Jesus

Iáuê ererê aiô gumbê
Com licença do Curiandamba
com licença do Curiacuca
com licença do sinhô moço
com licença do dono de terra

Curiandamba é um ser sobrenatural que, como Exu e similares, indica o caminho e exige ser apaziguado para não causar problemas para os escravos negros que trabalham nas minas. Curiacuca é outro ser sobrenatural, que também devia ter um poder ameaçador para o sujeito que canta e para os ouvintes que compartilham da comunidade de significado e experiência formulada pela canção. Ambos os seres sobrenaturais são provavelmente equivalentes míticos do papel representado por Exu, ou Bara, ou Legba, o deus trapaceiro nas religiões afro-brasileiras. A despeito do fato de se tratar de um gênero de circulação muito restrita, esse vissungo afirma uma certa atitude emblemática dos negros no Brasil. O sujeito une os mundos sobrenatural e natural, o religioso e o social, a hierarquia celestial e a humana; ele parece obrigado a render-se às esferas africana e brasileira de sua experiência. Por um lado, ele presta obrigação ritual aos espíritos, exatamente como se faz no candomblé, xangô, umbanda; por outro, presta sua homenagem ao jovem, provavelmente filho de senhor branco, mencionado explicitamente no verso seguinte. Isso pode ser tomado como uma orientação para o comportamento dos ex-escravos na Minas Gerais do século XX.
Mesmo assim, o disco de Clementina Jesus, há muito esgotado, circulou apenas entre uma elite de classe média de gosto refinado para música popular. É o tipo de música utilizada em peças teatrais, concertos universitários, programas especiais de televisão e similares. As canções de vissungo nos proporcionam uma boa oportunidade para diferenciar palavras que são tomadas alegoricamente, ou metaforicamente, das palavras usadas com a intenção de registrar um segredo. Esse mecanismo de ocultar significado é comum à maioria dos gêneros musicais de origem africana no Brasil. O samba, o pagode, o côco, todos usam fortes insinuações sexuais através de palavras que claramente têm duplo significado. Como se o cantor estivesse dizendo a seu público: sei que vocês me entendem, que são capazes de traduzir o que eu estou cantando. Por outro lado, em estilos rituais o ouvinte é constantemente excluído do acordo estabelecido previamente entre os membros de um determinado culto, fraternidade, irmandade ou comunidade. O que Clementina de Jesus faz aqui é reintroduzir o segredo (modo tipicamente ritualizado e exclusivo de expressão) no modo de expressão profano, potencialmente universal, que é a gravação comercial.” (p. 11-14)
Notas: 9 – Ver Carlos Julião (1960);  10 – Ver Bakhtin (1984); 

Jongo:


“b) Jongo
O jongo é um gênero que expressa claramente uma parte do processo histórico vivido
pelos negros no Brasil de terem de deixar as plantações logo após a abolição da escravidão em 1888, e de integrarem-se nas cidades, especialmente no Rio de Janeiro. Dança ‘rural’, ele é às vezes conhecido como caxambu. Faz parte dos estilos gerais pré-industriais que Edison Carneiro reuniu sob a rubrica de samba de umbigada 11. Outra dança e gênero musical ligado ao jongo é o cafezal, que celebra a habilidade de segurar um tabuleiro para limpar o café, fazendo com ele movimentos circulares. Se vimos, em primeiro lugar, a vida nos quilombos tal como hoje existem, o jongo, a capoeira, o maneiro pau e o maculelê, entre outros, descrevem esse mundo intermediário, entre toda a área rural, onde estavam as plantações, e o mundo plenamente urbano. Algumas das habilidades mostradas nessas danças são, em certa medida, habilidades rurais: destreza manual, força muscular nos braços, pernas e coxas; resistência e disposição para lidar com o confronto físico aberto, e assim por diante. Paralelamente à exibição física temos a exibição poética e a melodia cantada: samba de roda, capoeira, jongo, entre outros gêneros similares, todos incorporam a improvisação e a disputa poética, e o desafio entre cantores, articulados com as respostas do coro.

1. Jongo – cantado por Clementina de Jesus

Tava durumindo
cangoma me chamou
disse levanta povo [fogo]
cativeiro se acabou

O batuque mencionado neste jongo ocorre provavelmente numa pequena aldeia, ou num distrito, enfim, numa espécie de conglomerado de vivendas surgido como uma continuação das senzalas que foram abandonadas há não muito tempo. A geografia dessa música é um tipo de terreno baldio: o final de uma rua secundária, o quintal de uma casa abandonada, uma área periférica, equivalente simbolicamente ao espaço onde se joga o futebol dito de várzea, cada vez mais raro nos dias atuais.

Conforme argumentarei na última parte deste ensaio, um dos referentes que cercam esses gêneros musicais afro-brasileiros é o próprio processo de urbanização. Estilos musicais incluíram em sua textualidade o espaço social onde eles miticamente se originaram, onde espera-se que tenham lugar e para onde espera-se que o ouvinte se transporte. Por outro lado, na maioria das situações da música comercial, é mais provável que o ouvinte esteja situado em algum lugar distante do local evocado na música.

Um bom exemplo dessa imaginação de espaço na música afro-brasileira é a palavra terreiro. É usada para definir dois territórios diferentes, um deles sagrado e o outro secular. No sentido sagrado, terreiro é o pátio da casa de culto (atualmente, simplesmente o salão da casa de culto) onde se realizam as principais celebrações públicas para os deuses (o que em Recife se chama toque). No momento em que os membros do culto começam o ritual, o terreiro é transformado em solo africano: as pessoas não mais pisam em terra brasileira, mas passam a andar sobre terra africana. A mesma palavra, entretanto, é usada para definir, no imaginário, o lugar onde ocorrem danças seculares de música afro-brasileira. O samba, o pagode, o tambor de crioula, o carimbó, o samba de caboclo, etc., são todos tocados no terreiro. Assim, as tradições tanto sagradas quanto seculares da música afro-brasileira comentam o processo de industrialização do país. É muito mais que uma coincidência, por exemplo, que o primeiro samba gravado, Pelo Telefone, nos fale de uma conversa de um policial com músicos negros que estavam tocando um samba, provavelmente num terreiro.

2. Jongo – Candongueiro (Wilson Moreira e Nei Lopes) - Grupo Batá Cotô

Eu vou-me embora pra Minas Gerais agora
eu vou pela estrada afora
tocando meu candongueiro
Eu sou de Angola, bisneto de quilombola
não tive e não tenho escola
mas tenho meu candongueiro
No cativeiro, quando estava capiongo
meu avô cantava jongo pra poder assegurar, ô
E a escravaria, quando ouvia o candongueiro
vinha logo pro terreiro para saracotear
(Eu vou me embora...)
Meu candongueiro bate jongo dia e noite
só não bate quando o açoite quer mandar ele bater, ô
Também não bate quando o seu dinheiro manda
isso aqui não é quitanda
pra pagar e receber
(Eu vou-me embora...)
Meu candongueiro tem mania de demanda
quem não é da minha banda
pode logo debandar, ô
Pra vir comigo, tem que ser bom companheiro
ser sincero e verdadeiro
pra poder me acompanhar

Neste exemplo, graças ao artifício sistemático de compor letras de canções com um determinado tema, o padrão de integração estético-social proposto pelo jongo torna-se associado a uma idéia de ambiente rural numa espécie de estilo ‘regressivo’, ou ‘retrô’. O sujeito mudou-se de uma vila no interior de Minas Gerais para a cidade (miticamente, o Rio de Janeiro) e agora sente a mesma tristeza (ficou capiongo) que seu tataravô sentia durante os dias da escravidão; por essa razão, deseja voltar para Minas Gerais. Essa migração – tanto no espaço quanto no tempo histórico – é iconicamente expressa pela elegante mudança no ritmo, do 2 x 4 do samba para o padrão rítmico em hemiola do jongo. Os sons das marimbas entremeados com os tambores evocam o sujeito cantante andando por estradas sujas, a caminho das fazendas e pequenas vilas onde o tambor candongueiro tocava para amenizar as dificuldades da escravidão e das condições pós-escravistas. Na última parte da música, a harmonia vocal evoca o canto em duas ou três vozes dos Congados, agitando suas bandeiras coloridas enquanto passam pelo campo, envolvendo o ambiente de uma aura sagrada e transformando o inferno da vida nas senzalas na paz abençoada de uma integração comunitária, que só pode ocorrer, de acordo com a fantasia do sujeito, em um
ambiente rural e jamais em uma megalópole industrial.
O que fizemos acima foi, através de uma audição cuidadosa do texto e do contexto desse samba/jongo, tentar colocar em prática as três dimensões de análise que esbocei na Introdução: atenção à linguagem musical, à imaginação poética e ao sub-texto de história social condensado na canção.” (p. 14-16)
Notas: 11 – Ver duas excelentes monografias sobre jongo, de Maria de Lourdes Borges (1984) e de Edir Gandra (1995).

Candombe:

“a) Candombe de Minas Gerais

As peças de candombe que aparecem no vídeo de Glória Moura provêm de uma comunidade altamente isolada, se optarmos por descrevê-la do ponto de vista da sociedade branca nacional 12. Como forma cultural, o candombe é um caso espetacular de distância socialmente construída dentro de uma estrutura de profunda inter-relação musical. Matição é uma vila totalmente protegida do mundo exterior, especialmente das instituições centrais do estado: educação formal muito pobre, ausência de televisão, acesso mínimo a rádio, estradas ruins inacessíveis, pouquíssima atividade econômica além da agricultura de subsistência e algum artesanato. Não obstante, considerada do ponto de vista do grande texto musical afro-brasileiro que mencionei acima, Matição mostra um alto grau de integração e contato, provavelmente ao longo de centenas de anos, com outras tradições afro-brasileiras da região.
O candombe é uma forma estética altamente desenvolvida que combina canto harmônico muito preciso, de estilo ocidental, com um conjunto de tambores que desenvolve padrões rítmicos que parecem muito distintos da tradição de batuque iorubá e fon no Brasil, que se incluem entre os mais ‘africanos’ de nossos conjuntos de tambores. O trio de tambores do candombe parece muito aos conjuntos de tambores bantos conhecidos em outras partes do Novo Mundo, tais como os tambores redondos de Barlovento, na Venezuela. E como foi que se criou um gênero musical tão específico e tão articulado? Certamente através de um longo processo de experimentação, observação e intercâmbio com padrões musicais provenientes de outras comunidade negras tradicionais e de importantes centros de culturas musicais católicas em Minas Gerais e nas áreas circunvizinhas do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Goiás. Em algum lugar próximo das divisas desses quatro estados poder-se-ia traçar uma linha estabelecendo os limites de uma área musical do candombe. Assim, a música candombe só pode ser considerada isolada quando pensada do ponto de vista daqueles setores que controlam a circulação de música numa escala mais ampla, seja em termos de estado, região ou país.

O conjunto de candombe consiste em um trio de tambores, cujos princípios organológicos se inserem entre os mais puramente africanos de todos os conjuntos brasileiros de tambores. São chamados requinta, crivo e santana; um tambor de fricção chamado puíta e um tambor comum de barril chamado caixa. Nessa base desenvolve-se um padrão melódico, no canto a duas vozes, geralmente em terças, com compassos e tempo precisos, e um perfeito ajuste da batida dos tambores – diferente, portanto, do fluxo e flutuações tão característicos do estilo de canto da música do xangô e do candomblé. Poucas são as palavras, com numerosas vogais, sílabas isoladas, e exclamações. Certos padrões melódicos e harmônicos do candombe mostram claras ligações com estilos de canto semelhantes das Congadas e das Folias de Reis de Minas Gerais. Por exemplo, o tamanho dos versos e frases musicais, a estrofe composta de duas frases melódicas movimentando-se em torno da dominante e de duas em torno da tônica, sempre finalizadas com longas exclamações. Contudo, o que é único no candombe é o forte batuque (juntamente com a preservação de um amplo conhecimento de fabricação de tambores) ajustado a um refinado canto em duas vozes. A dança também é muito singular, em termos brasileiros, e é claramente diferente das danças realizadas pelas congadas e folias. Infelizmente, ainda é muito escassa a informação a respeito da música candombe do Brasil, não existindo, que eu saiba, sequer uma única gravação dessa música.” (p. 16-17)
Notas: 12 – Ver o vídeo Matição, comunidade iluminada, dirigido por Glória Moura.


Região Descrita: Vissungo – Minas Gerais.
Jongo – Rio de Janeiro, Minas Gerais.
Candombe – Minas Gerais.
Período da Descrição: Sáculo XIX e XX.
Comentários: O texto, como foi apresentado em uma série de palestras (aulas), expõe seus argumentos de forma sintética, mas mesmo assim é interessante pois ilustra-os com a transcrição das letras e, como professor de música, explica não só os significados por trás das palavras, como também esclarece a parte rítmica, os compassos, os instrumentos, etc. 





TERRA DEU, TERRA COME


Documentário. Brasil, 88 min, direção de Rodrigo Siqueira.



O premiado documentário Terra deu, terra come se desenvolve em torno da figura de Pedro de Alexino, um dos últimos conhecedores dos vissungos, cantos em dialeto benguela dedicados a antigos rituais fúnebres1. Rodrigo Siqueira, produtor e diretor, tornou-se próximo da família de Pedro, que vive no quilombo Quartel de Indaiá, no distrito de Diamantina, em Minas Gerais. Esse ótimo filme é, ao que tudo indica, resultado da cumplicidade especial criada entre o diretor e seu personagem ao longo de um percurso um tanto quanto enigmático. De início, encontramos uma figura que parece interpelada por alguma espécie de curiosidade distanciada, pelo olhar de um estrangeiro investigador que se embrenha nos rincões para registrar testemunhos e costumes prestes a desaparecer. Mas Pedro de Alexino é caboclo velho que escapa dos quadros prontos. Com sutileza, ele subverte categorias e planos, transita por distintas posições e termina por conduzir o espectador através do que se parece com um documentário de cunho etnográfico, mas que termina por se revelar como um jogo especial. É pela maneira como a linguagem ali constrói um mundo particular (desvelado com esmero por Siqueira) que me proponho, aqui, a acompanhar alguns de seus passos2.


Veja o filme completo na Sessão - AfroVideos na página Inicial


De início intrusos no meio de uma comunidade que projeta o seu próprio tempo e a sua própria luz, o diretor e a equipe ali aportam munidos de suas tecnologias. Através de computadores e câmeras, os estrangeiros vêm captar a alma dessas pessoas - estrangeiros "sabidos", diz uma das figuras interpeladas pelas lentes. Talvez eles sejam similares ao "Dito-cujo", ao astucioso, àquele de quem se fala apenas através de rodeios. A câmera, que é também uma forma de feitiço, terá o seu poder desviado ao longo da história, orientada em torno de um cadáver velado no terreiro do velho Pedro. Colocado sobre um jirau ao lado da casa, o defunto é testado por ele e sua esposa. Perguntam-se os presentes se o corpo ainda está inchando, se ainda está quente. Parece que está vivo, mas já morreu.


À noite, Pedro revela para a câmera uma entidade mascarada, espécie de trickster desconfiado, que interpela os "paulistas" estrangeiros. Estariam aqui para roubar o meu tesouro? O tesouro escondido em algum canto? Surge aí o primeiro desdobramento do que escapa à condição de personagem ou de sujeito etnografado: a figura mascarada noturna se parece simultaneamente com uma encarnação de antepassados e com um alter ego de Pedro, que assim passa seus recados indiretos ao "paulista". Não venha aqui roubar o nosso tesouro... Já se foi o tempo em que os negros não podiam sair com diamante, mas só com ouro - "os tempos da Rainha", que terminaram na alforria. Depois, ainda no garimpo, chegaram a encontrar fortunas que cabiam na palma das mãos - as "canjiquinhas", os diamantes que escorreram pelos mesmos dedos que antes os haviam encontrado. Vendiam pelo que precisavam, mas quem ganhava dinheiro de verdade eram os forasteiros. "O garimpo dá, o garimpo toma", escuta-se da boca de alguém.


Qual será, enfim, o valor do diamante? Os grãos da terra colhidos por Pedro ao longo de um século - pratos de "canjiquinha", "bolas de gude", em seu dizer - distribuíam por ali apenas o valor de suas sombras, ou dos brilhos fugidios que logo desapareciam em sua impossibilidade. A figura mascarada volta de tempos em tempos e diz, em algum momento, que vai desenterrar o pote. Mas seu tesouro é só vestígio, ele existe plenamente apenas com os outros, os estrangeiros. Ele é a condição de que, por ali, o diamante permaneça enquanto história. Pedro de Alexino tem quatorze filhos, dois mortos. Sanfoneiro, garimpeiro, lavrador, cantador: "é verso toda vida, é verso mesmo, moço", diz. Com os versos, ele atravessou os anos dos diamantes perdidos e dos desenganos do "Sujo". Pedro conta que o Sujo parece ter inventado o moinho para moer a própria mãe. Mas ali (comenta sobre o seu moinho d'água, ainda ativo) não passa sangue não, só grão de milho para fazer o fubá: "se cair um rato, ele sai vivo". Conta também que seu tio, João dos Santos, encontrou diamante grande, mas enterrou com medo de que o povo "acismasse". O brilho do diamante - "botão de mágoa" - tem o seu perigo. "A terra deu, a terra come."


Outro risco é também a cachaça, de que o finado João Batista, velado no terreiro, gostava muito. Morreu de velhice com uns 120 anos, mas tomava cachaça, que é "para o estômago não ficar limpo de tudo". E vão consolando a esposa do falecido: "na dor que o espírito dele sair, ele vem para renovar", escuta-se. Seu Pedro diz que nunca topou com "algum", mas sabe de histórias. "Ele", o "Sujeito", pede o corpo da gente: quando a pessoa que fez um pacto morre, o corpo some, o cadáver desaparece da terra. "Existe ele", diz Pedro. O "Sujo", o "Bicho". É por essas e outras que o defunto preparado pelos parentes de seu Pedro precisa, aos poucos, ser separado desta terra. Escuta-se os versos: "João Batista morreu/ antes ele do que eu/ João Batista era feiticeiro/ vai ser enterrado lá na Curva do Carneiro". Antigamente o povo era ruim, explica alguém, dizendo que se matava de feitiço só por maldade. Agora não é mais assim. O Peçanha, antigo dono de toda aquela terra, diz-se que tinha "meia parte" com o Dito-cujo.


Antes, conta Pedro, aparecia uma "tropa" de seiscentas a cem pessoas para carregar o defunto - cantavam "uma língua deles esquisita para carregar". Não podiam levar calados o morto, pendurado em um pau: "não é saco de carne!". Os "tiradores", que é como se referem aos participantes do antigo cortejo fúnebre, seguiam "fazendo a retinta na voz". Para seu Pedro, o rádio faz com que os jovens não queiram mais aprender - e falta também um companheiro para ajudar os cantos. É preciso cantar o morto a todo instante ao longo do caminho: "canta para ficar mais leve; se não cantar, pesa". Hoje, porém, quem saberá conduzir os mortos para o seu devido lugar, a fim de que esta terra não fique infestada pelos espectros? Quando o morto incha, tem que saber cantar, a fim de que o "Outro" não chegue para levar o cadáver. "Madeiro pesado", diz-se em uma reza que parece sobrepor o Cristo à própria figura do defunto. "Bicho barbado velho", diz Pedro sobre o corpo, e completa: "esse é macurendê mesmo!". O diretor intervém com sua curiosidade: "O que é macurendê?". E responde Pedro: "Macurendê é morro, companheiro de Jamundá", sem mais explicações. Mas Pedro sabe que, se o morto não entra no céu (que não é para qualquer um), ele fica por aqui, fica zanzando, "representa alguém". "Munzura" tem alma que faz munzura, mas outras não. Outras "não mede ocê tutu". Quem tem o espírito forte enxerga essas almas - Pedro já viu várias vezes, mas hoje em dia diz estar com o espírito fraco, não aguentaria o encontro. E surge de novo o mascarado: alma do morto?


Já está na hora de levar o defunto e Pedro pede licença para o dono. "Com licença dono da casa/ com licença do curiacuca3/ com licença do curiandamba4!" E segue com o belo canto, que é ensinado aos jovens acompanhantes do cortejo. "Essa terra de banguê5, doriá ê ê...", escuta-se em outro verso. O defunto, levado nos ombros pelos homens mais jovens, precisa de cuidados diversos ao longo do caminho. Param em uma árvore, colocam o morto atravessado da trilha e Pedro marca uma cruz no tronco. Bebe-se o finado. Em uma caneca, Pedro serve cachaça para os carregadores e para si mesmo. Os carregadores dizem que o morto está pesado, está inchando. "Eu não falei concês?! Ele tá é com pesar de sair daí. Mas ele sai. Ele não é daí, ele tem que sair." Como se o morto, aos poucos, já fosse sendo conduzido para fora desta terra, para que os vivos possam ficar em paz. Os carregadores não podem parar de cantar, senão ele incha ainda mais. Depois de uma colina, Pedro diz que já não se deve "jogar vissungo" e mudam, então, o gênero desses cantares.


Já vai se aproximando o cortejo da sepultura, aberta em cavernas formadas pela erosão de um barranco. Sob o comando de Pedro, os carregadores jogam ali o "defunto". "Exorta o morto a pedir perdão aos seus inimigos, para a alma dele ficar sossegada", diz o guia ao que, agora, se revela subitamente como um tronco de bananeira. Vestido com a máscara antes portada pela entidade encarnada por Pedro, o tronco, substituto do morto, jaz agora em seu lugar. Faz-se uma libação de cachaça sobre a bananeira, que é para o morto não vir depois buscar aquela dos vivos. Rodrigo, o diretor, quer saber quando é que se enterra um tronco como esse. Pedro conta a história de um tal que teve o cadáver levado pelo Sujo - "é o tal que tinha sua parte dele, né, com o Bicho... inteira!". Os parentes, perdendo então o corpo, decidem cortar uma bananeira e jogar rápido na cova, antes que pudessem se dar conta do truque. O corpo de verdade havia sumido - "passou a mão no cadáver e sumiu com ele", o Bicho...


Agora, nesse jogo que Pedro encena, parece que se adota a mesma estratégia (ao que tudo indica, combinada com o diretor). Enterrava-se o substituto de um corpo ausente, que havia sido tomado pelo Dito-cujo; no filme, o substituto parece servir de gatilho para a memória e para a construção de um percurso que os jovens não saberiam fazer por conta própria. Mas todo jogo é também um ritual. Pedro, que sabe bem disso, conduz essa farsa de verdade, já que, no limite, são outros os critérios para conceber o que chamamos de encenação ou de realidade. O substituto do morto evoca a sua ausência, o seu cadáver levado pelo que não se nomeia. Ele é mais um índice de tudo o que, longe de pertencer à fantasia, remete a uma ausência constitutiva, a uma virtualidade capaz de assegurar a tessitura desse mundo vivido no Quartel de Indaiá. O tesouro que não se encontra; o valor de fortunas desfrutadas apenas por outrem; os antepassados e os fantasmas vistos através dos relatos alheios; a presença do "Bicho" sempre pelos desvios, pelas palavras tortuosas, por seus "representantes", por suas "meias partes"; os troncos, as visões.


"Consegui apurar muitas histórias e alguns tesouros. Mas Pedro fez questão de enterrá-los sob uma ambiguidade que transita entre a verdade, a memória e a fantasia", escreve Rodrigo Siqueira no texto que encerra seu filme. Ora, a ambiguidade de Pedro de Alexino não é daquelas que se expressa por divisões entre o fato e o feito, o real e o inventado; seu uso da linguagem não é daqueles que trata dos referentes unívocos ou objetivos. Aixo era y no era, diriam os narradores de Majorca6. Sua ambiguidade é toda fabricada, feita de feitiços, de palavras-fetiche - e, nessa medida, verdadeira. Muitas de suas regras escapam necessariamente à compreensão do estrangeiro, que termina por ser transformado em personagem do filme traçado pelo próprio Pedro (um grande mérito do diretor, aliás, isso de se deixar levar pela mandinga de seu anfitrião). Mas e as regras do jogo - o tesouro? Não são da ordem das coisas que se diz ou se explica; não são da ordem do que se apura. Elas se mostram apenas através de indícios, daqueles apelidos aplicados com cautela ao que não se alcança pela fala direta.



PEDRO DE NIEMEYER CESARINO é antropólogo, professor da Universidade Federal de São Paulo.



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Fotos do Encerramento

Fotos da visita ao Terreiro Mokambo

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Leia o Estatuto

LAMENTO NEGRO (fragmento)


Eu sinto em minhas veias o grito dos cafezais.
Enxergo em minhas mãos a sombra dos meus irmãos
vergastados pelo chicote dos senhores da terra.

Aqueles que carregam o Brasil nas costas
não têm túmulos nem legendas;
seu sono não é velado,
seu nome ninguém conhece.

Hoje eles seguem a sina de uma sorte inglória...


(Prof. Eduardo de Oliveira)